Sobre apagamento e sobre memória em chamas

Tempo de leitura: 6 minutos

O dia três de setembro amanheceu diferente. Acordei com uma sensação estranha, mal consegui acordar. Levantei e segui a rotina diária das segundas, de levar meu filho Teo pra natação. E uma sensação estranha no peito me incomodava. Aos poucos me dei conta de que havia sonhado com o Museu Nacional. Fui dormir no dia anterior com a imagem do museu ardendo em chamas na minha cabeça, e natural que aquilo adentrasse meu subconsciente, mas confesso que não poderia ponderar ou sequer imaginar o impacto que um prédio pegando fogo poderia causar em mim. Não era só um prédio, um museu, nossa história, era muito mais!

No caminho de volta, depois de deixar meus filhos na escola, fui paralisada diante de um bar pelas imagens do que restou do museu sendo noticiada. E pra minha surpresa as lágrimas correram…sim por um museu! Fui pega de surpresa por esse arrebatamento, afeto que nem eu sabia existir dentro de mim.

incêndio no Museu Nacional

E voltei pra casa pensando porque este fato estava impactando e repercutindo tanto em mim. E penso que na posição de mãe, pelo fato de por algum motivo não ter levado meus filhos até aquele dia pra conhecê-lo e pela impossibilidade concreta agora, de poder voltar no tempo e corrigir esta falha irreversível. E ao lado disso, uma sensação de indignação, de revolta e impotência como ser histórico e político que sou e que somos, de ver nossa memória transformada em cinzas, justo num momento em que sofremos de uma amnésia coletiva de nosso passado colonial e de uma democracia que ainda adolescente, por não ter sua identidade ainda bem definida, se rebela sem direção, segue o bonde e por falta de maturidade, quebra a cara tentando se descobrir e que por mais que já não tenha mais seus 17 anos, ainda canta “que país é esse? É a porra do Brasil!”, como um hino esvaziado que definitivamente não nos representa.

Num momento em que estamos sendo asfixiados por um patriarcado neoliberal que não admite que nossa democracia esteja amadurecendo e ganhando consciência de sua identidade e dos rumos que deseja para si, ver nossa memória e nossa história sendo arruinadas, transformada em pó, num ano em que deveríamos celebrar 200 anos de trabalho árduo de professores, pesquisadores e estudantes, pelo resgate de nós mesmos, é como voltar à Idade Média. Em séculos passados, quando um povo desejava exercer seu domínio sobre outro, queimavam-se os livros e assassinavam os anciãos, a fim de apagar sua memória e sua história. Ver o Museu Nacional em ardendo em chamas, não é só um apagamento concreto de memórias materiais, de anos de pesquisa e história, o que vimos queimar e voar pelos ares é a tentativa mais cruel de assassinar e apagar nossas ideias! É como se queimasse junto com o museu um pedaço de nós, de nós artistas, historiadores, pesquisadores, estudiosos, de nós curiosos, de nós cidadãos, de nós visitantes, de nós Luzias…

Ver nosso patrimônio histórico, artístico, cultural voar pelos ares, voltar ao pó, é como lançar ao ar um sinalizador, de um povo perdido desejoso por salvar-se, porque reconhece a importância de lutar por si e de permanecer. Por mais jovens que sejamos, a luta nos moldou, a escravidão nos tornou fortes, resistentes, criativos, o saber nativo nos trouxe resiliência, mas o esquecimento é fatal e o apagamento uma tática das mais cruéis e eficazes contra um povo que mal nasceu e já sente os reflexos de estar vivo. Porque sim, estamos vivos! E a memória se faz presente através de nós, das histórias que contamos de geração a geração, do que escolhemos manter vivo. Em algumas culturas, a morte não marca o fim, mas a lembrança, pois acreditam que se mantém vivo o que é lembrado. Por isso o apagamento da memória de um povo é a arma mais eficaz para dominá-lo.

O descaso deste governo com nossa história, com nossa cultura, com nossa arte, com nossa educação se resume na triste imagem que neste 3 de setembro de 2018 paira diante dos olhos de todos nós. Sim, deste governo nascido a partir de um golpe, porque só foi capaz de por esse meio sórdido chegar ao poder, porque apesar de todas as dificuldades anteriores, o congelamento de verbas durante 20 anos pra saúde e educação se deu nesta gestão “temerosa”, que até a presente data só havia repassado 54 mil reais para a manutenção das atividades básicas do museu para seu funcionamento, o que nas gestões dos anos anteriores, por mais que tenha havido falhas, não ficou abaixo de 250 mil. Ainda está longe do ideal, sabemos todos, mas havia um processo em curso. Em 2009 foi criada pela primeira vez uma política pensada especificamente para museus, numa tentativa de colocar esse processo de resgate em curso, através do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), que veio durante o governo Lula pra tentar começar a corrigir todo esse abandono pelo qual vem passando as instituições museológicas.

O museu há muito tempo deixou de ser um lugar estático, cheirando a mofo. Nós, eternos estudantes, pensantes, educadores, pesquisadores, historiadores, fazedores de arte que somos, temos repensado e posto em movimento este novo conceito de museu que desejamos e que vemos necessário nos tempos de hoje. O museu como um espaço vivo, dinâmico, que busca um diálogo do passado com o presente, para construirmos um futuro com os alicerces de que precisamos e pautados no que acreditamos. Por isso penso que deixar sucumbir um dos Museus mais importantes do Brasil e que guarda parte não só da nossa história, mas de um pouco de cada lugar do mundo, visto que ali estavam obras e memórias de diferentes partes do mundo, não só do Brasil, é também tentar queimar nossas ideias, nossas memórias, a fim de silenciar a luta.

Silenciamos todos, queimamos todos, ardemos todos, choramos todos, perdemos todos, mas estamos vivos, não fomos apagados. E como fazem os griots podemos e devemos escolher a partir de agora que história queremos que permaneça viva para as futuras gerações. Porque selecioná-las, contá-las, passá-las adiante, é mais que um ato de resistência ao tempo e manutenção de nossa memoria e história, é, sobretudo, um ato político em tempos de barbárie.

Queimaram o museu, mas a memória permanece em nós. Sejamos todos griots da resistência, sejamos meteoros, sejamos a grandeza dos dinossauros, façamos soar as flautas indígenas e os tambores de nossos ancestrais, sejamos todos Luzias.

O pó se vai no vento, mas as palavras também! E que leve…Fora Temer!

Filhos, era uma vez uma mulher chamada Luzia…

Leia também: http://aressarios.com.br/arte-educacao-e-politica/reconversao-cultural-da-escola-por-uma-escola-cidada/

2 Comentários


  1. Excelente o texto! Aliás, tudo o que essa moça escreve tem um quê de especial, seu olhar, sua sensibilidade, seu amor pela arte. Parabéns!

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