O poder de descascar-se

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cebola camadas

    Pode parecer estranha a forma como vou começar esse texto, mas são as primeiras palavras que me vem agora. Estava eu na cozinha preparando o almoço, separei os ingredientes que precisava. Entre eles uma cebola.
    Escolhi a mais bonita. Peguei a faca e comecei a descascar. Cortei a parte de cima e comecei a tirar a casca, aquela primeira casca amarronzada. E continuei, mas à medida que fui tirando as camadas, percebi que aquela cebola, que a princípio, por fora, aparentava ser a mais bonita e que parecia estar “perfeita”, logo abaixo da superfície não estava “tão boa” assim.
    Abaixo das primeiras camadas a seguinte revelou-se levemente estragada, um pouco mole, mostrando que algo ali não ia bem. Tirei essa camada achando que resolveria, mas percebi que a questão ia mais fundo. Era mais profundo do que imaginava. Fui, então, retirando camada por camada, a fim de entender até onde a questão iria.
    Enquanto removia as camadas da cebola fiquei pensando o quão interessante aquilo era, o quanto se assemelhava à vida: muitas vezes julgamos algo pela capa, pela casca, pela aparência. Algumas pessoas ou situações se apresentam aos nossos olhos em “condições ideais”, aparentando estar tudo bem, em “bom estado”, como se ali estivesse tudo funcionando da mais perfeita forma, como pareceu a cebola que escolhi, justamente pelo seu aspecto superficial.
    Quando mergulhamos um pouco mais fundo, quando vamos além da primeira camada, é possível que nos deparemos com alguns “problemas”, questões acumuladas e guardadas abaixo da “derme”, escondidas debaixo do tapete, como forma de não ver, não olhar, apagar; tudo aquilo que silenciamos e que com o passar do tempo “vai apodrecendo” dentro de nós.

    São camadas que só podemos ver se ousarmos passar da superfície, se nos despirmos das primeiras camadas, se tirarmos a casca que nos reveste e nos protege de nós mesmos e do outro. O que velamos para não ter que olhar, como um mecanismo instintivo de defesa; partes de nós que não gostamos, assuntos inacabados, não resolvidos, tudo aquilo que não queremos encarar. Isso fica ali parado, estagnado e adoece, como aquela cebola.

    E continuando a descascar a cebola, a remover as camadas daquela parte escura que se intensificava, as camadas seguintes ainda mais “podres” se apresentavam, emergiam do profundo onde se escondiam e seguiam silenciosamente no seu processo de “estragar-se” de “adoecer-se”. Parecia estar tudo perdido, que nada mais havia ali que pudesse ser aproveitado. Talvez fosse melhor “jogar logo tudo fora”.

    Nessa hora me lembrei de já ter ouvido essa frase “jogar logo tudo fora”, mas saída da boca de uma pessoa. E me lembro de quando ouvi, ter me perguntado: o que leva um ser humano ao ponto de desejar se jogar fora? O que acontece dentro da mente de uma pessoa pra que ela chegue ao ponto de desistir e achar que não vale mais a pena tentar? Voltando à cebola, me perguntei: quem me garante que depois de tudo isso não haveria algo de bom?

    Há um universo complexo, profundo, além de infindáveis estudos sobre a mente humana e seus mecanismos, além de estudos sobre a psique humana. E uma coisa posso afirmar em relação ao legado que estes estudos, teorias e estudiosos nos deixaram: “O poder do inconsciente, o que queremos na parte mais profunda do nosso ser se manifestará, por bem ou por mal, ou vice-versa, o que uma pessoa se tornou era, na realidade, seu mais profundo desejo.”, como disse Freud.

    Há aqueles que ousam remover essas camadas em busca de se autoconhecer, de trazer à tona e tornar consciente o que o inconsciente simplesmente manifesta através de nossos comportamentos. E nessa busca se dão conta de suas luzes, mas também de suas sombras, e vão além disso: percebem que onde há luz há sombra, mas que o inverso também é uma verdade: onde há sombra há luz.

    E sigo descascando a cebola, camada por camada e, aos poucos, à medida que cada camada é removida, incluindo aquela escura, que parecia não ter fim, já que quanto mais fundo cavava, mais profunda ela se revelava, fui observando essas camadas mais escuras paulatinamente clarearem. Pacientemente segui em frente.

    E por trás delas, vi surgirem camadas intocadas, novas, íntegras. Camadas “perfeitas”, bonitas por essência, sem qualquer sinal de dano. Camadas que compunham como que o “núcleo” da cebola, o miolo, a melhor parte dela. Como que a mostrar a nós que nem tudo está perdido, que por trás de toda escuridão, há luz, basta termos consistência, persistência e coragem de seguir incansavelmente removendo as camadas de nosso ser, ir fundo em nós, mergulhar na praia de águas calmas, atravessar o rebento das ondas, encarar o mar revolto, porque lá na frente a água é cristalina, límpida, pois é lá que reside a nossa essência.

    Era uma vez uma cebola e descascando…me encontrei.

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