Para além dos muros do ser

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processo terapêutico

       Eu acredito que o processo terapêutico é o se conhecer através do outro. Você fala para se ouvir, para se escutar, para trazer ao consciente aquilo que o inconsciente guardou, arquivou a sete chaves pra te proteger. Um “arquivo morto” que está mais vivo do que tudo, mais vivo do que você imagina, em você e através de você.

       É uma relação de espelhamento, onde você olha o outro e se vê, onde você é interpelado pela sua própria fala e é colocado diante de você mesmo, despido de ego. É como um “descascar de cebola”, em que o ato se faz por camadas, uma a uma, despindo-se de cada peça de roupa, de cada “máscara”. Algumas que você sabia que estavam ali e outras que você nem sabia, e são essas as que costumam demorar mais pra sair e as mais dolorosas de se olhar, reconhecer e definir o que fazer com elas e sem elas.

       O fato é que uma vez diante de si, você não tem pra onde correr, é um caminho sem volta. O que se vê, uma vez visto, não é possível “desver”. A tomada de consciência é uma via de mão única. Você pode até decidir ignorar e tomar decisões “apesar de”, mas esquecer, apagar ou voltar, não são opções possíveis.

       Conhecer-se é um gesto libertador, porque liberta você de você mesmo, das prisões que você mesmo se meteu, mas também te dá a consciência das amarras sociais, essas correntes invisíveis que você carrega sem saber. Você começa a entender o que é você e o que é o “outro”, o que é seu e o que não é seu e, assim, começa a separar as pedras que andou carregando. Começa a soltar.

       Nesse processo de conhecer-se, você também adquire habilidades de conhecer melhor o outro, o ser humano; você entende melhor seu “funcionamento”, torna-se capaz de ter mais compaixão, empatia, muda a comunicação. Muda porque você muda.

       Os grandes líderes do mundo foram pessoas extremamente capazes de entender o outro, porque primeiro buscaram entender-se. E estudaram para isso, buscaram informação, conhecimento, mergulharam fundo e por isso se tornaram esses grandes líderes como Gandhi, Mandela e tantos outros.

       Tive a oportunidade de conhecer Augusto Boal e ouvir sua fala num evento na UNIRIO. Pouco tempo depois ele faleceu e após sua morte pude ter acesso e visitar seu acervo de livros, sua biblioteca pessoal. E ali não havia somente livros de teatro e arte, havia muitos, mas muitos livros sobre psicologia, estudos da mente humana, livros de sociologia, estudo dos povos e sociedades, ou seja, livros que o permitiam conhecer-se e conhecer melhor o outro. Não foi por acaso que seu método do Teatro do Oprimido, mais que um método, uma filosofia, tornou-se mundialmente conhecido, e seus livros traduzidos para diversos idiomas. Há um fundamento por trás de tudo isso, um conhecer-se para conhecer o outro e vice-versa: conhecer o outro para conhecer-se.

       E por que estou falando tudo isso? Porque na minha trajetória, já iniciei alguns processos terapêuticos aos quais não dei continuidade por não ter havido o que chamam de “transferência”. Não acontecia. Eu sentia que falava no vazio, que não ecoava, que não havia escuta efetiva, muito menos retorno. Não acontecia.

       Mas tive a sorte também, de ter profissionais diferenciados, que mudaram a perspectiva desse processo. Minha última terapeuta soube lindamente criar uma qualidade de conexão por experiências em comum compartilhadas, como o fato de existirmos enquanto mulheres nesse mundo, a experiência da maternidade, do nosso “não-parto” e toda a diferença física e emocional que fica após a violência obstétrica, que se tornou corriqueira em nosso país (que é onde temos o maior índice de cesárias no mundo, mas isso fica pra um próximo texto), e também pelos desafios das especificidades da história de nossos filhos, das lutas que escolhemos travar socialmente para que não sejam tão “específicas” assim.

       Foram essas conexões estabelecidas pela nossa humanidade que permitiram que o processo terapêutico acontecesse plenamente. Escuta plena, pontuações precisas, quase cirúrgicas. Ela falava e a voz que eu ouvia era a minha, como se estivesse devolvendo a mim algo que já era meu. Literalmente um desenrolar, um desembolar de fios desse emaranhado que se tornou o meu novelo. Havia ali um distanciamento, mas não uma distância.

       Aquelas tardes se tornaram um encontro comigo mesma e acredito que esse seja o objetivo do processo terapêutico. Emocionamo-nos juntas também…sim! Somos humanas e a relação humanizada que desejamos e militamos, inclusive, com nossos corpos e em nossos partos, foi a que estabelecemos. E funcionou! Aprendi muito sobre mim e dei “anos luz” de passos que eram necessários dar. Infelizmente não pude seguir com o processo.

      Hoje, outro ser humano incrível me acompanha, que de sua forma, soube estabelecer a mesma qualidade de conexão, não a mesma conexão, mas a mesma qualidade. E mais do que nunca estou certa de que a humanidade aproxima. Respeito todas as outras formas de abordagem e linhas terapêuticas, mas pra mim essa é a que funciona e é desse lugar que me permito falar.

       Quando me refiro a uma relação humanizada, me refiro à qualidade da conexão. O pessoal e o profissional estão claramente definidos, mas há brechas em que se permite entrever que ali, à sua frente, está um outro ser humano também em processo. E isso é lindo! Estamos em permanente construção. E de alguma forma, nesse processo de falar e ouvir, de ouvir e falar, ambos aprendem, ambos crescem, ambos evoluem. E isso não é sobre mim ou sobre ele, é sobre ser humano.

      Essa semana estava buscando algo que pudesse assistir, mas também aprender, não só consumir. Foi então que passei por um documentário, que naquela lista infinita de possibilidades, me chamou a atenção. Ainda assim insisti em continuar buscando. Mas não teve jeito, aquilo ficou na minha cabeça, decidi voltar pra assistir. Aquilo me pescou.

       E refletindo um pouco mais, foi fácil entender o porquê de ter me despertado a atenção: porque falava, de alguma forma, do outro ser humano que, semanalmente, senta à minha frente pra me ouvir, pra me escutar verdadeiramente. Foi um instinto humano de buscar aprender um pouco mais sobre esse outro. De repente eu me vi ali, querendo aprender mais sobre uma realidade que pouco sabemos. Informações e aprendizados sobre o outro, sobre condições diversas desse estar no mundo e sobre nossa humanidade intrínseca. Lições de vida.

       Eu terminei meu dia um ser humano melhor do que comecei. E se você, esse “outro” que escuta e tem agregado tanto em minha jornada, estiver lendo isso, quero que saiba que sou muito grata por me ver em essência.

       Acima de gênero, de raça, de nacionalidade, somos todos humanos!

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