Quando queremos ensinar e quem aprende somos nós

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criança em escolinha de futebol GuerreirinhosFaz tempo que venho pensando sobre isso, sobre como a maternidade inverteu essa minha lógica de raciocínio (e acho que da maioria), sobre uma preocupação e cuidado constante com o que vamos ensinar aos nossos filhos. E como a própria palavra já traz em seu bojo, trata-se de uma “pre-ocupação”. Nos ocupamos antes com aquilo que devemos ensinar aos nossos filhos e a meu ver, nos fechamos ou não mantemos a escuta aberta para o que temos para aprender com eles.

            Desde muito cedo meus filhos me deram fortes sinais de que muita coisa estava por vir, que muitas estruturas fortemente erguidas em concreto armado estavam prestes a ruir. Sim, parece forte, mas foi exatamente assim que aconteceu comigo. Minhas verdades soberanas, minhas certezas, foram uma a uma sendo levadas ao chão. Por mais atenta que eu estivesse, por mais escuta que eu mantivesse aberta, por mais disponível que eu me colocasse, vez ou outra me via tropeçando nas minhas próprias pernas e me pegando a repetir velhos padrões de comportamento. Porque eles estão introjetados em nós de forma tão profunda, que mesmo conscientes desses valores com os quais não compactuamos e não concordamos, nos pegamos a cair em suas armadilhas e a mimetizar comportamentos que não nos pertencem, mas que historicamente, socialmente e culturalmente temos repetido sem nos dar conta, até mesmo quando acreditamos não reproduzir os mesmos.

            Sempre eduquei meus filhos para serem livres, para agirem por suas próprias ideias, para serem sujeitos da construção de sua autonomia, e foi exatamente por esse motivo que escolhi para eles uma educação de base montessoriana, por ser um método que respeita o tempo de cada criança, priorizando o desenvolvimento de sua autonomia; porque acredito que quando criamos nossos filhos para serem seres mais humanos, mais sensíveis, com maior potencial de refletir criticamente diante das situações que a vida lhes apresenta, e isso já desde pequenos, estarei contribuindo para a sua liberdade e para que eles, como cidadãos, venham a somar forças para que tenhamos uma sociedade cada vez mais equânime, mais justa.

E porque estou falando tudo isso? Porque hoje eu recebi uma visita de dois amigos, dois meninos vizinhos nossos, que são maiores do que eu, mas que quando me veem me chamam de “tia”. Esses meninos têm 19 e 21 anos e vou dizer a vocês que ainda estou para ver meninos tão jovens com a maturidade que esses dois têm! Vi esses meninos crescerem, joelho largo, corpo magro e eles também acompanharam de alguma forma a minha trajetória desde que me mudei para o mesmo bairro que eles e nos tornamos vizinhos. Confesso a vocês que para além de vizinha me tornei grande admiradora desses “molecões” que mais parecem homens em corpo de menino, ou melhor, nem o corpo é de menino! De vez em quando eles vêm na minha casa e quando isso acontece a hora passa e a gente nem vê. É tanta coisa pra ensinar, é tanta coisa pra aprender…eles ensinam e quem aprende é a gente! Queria eu poder apresenta-los a cada um de vocês. O fato é que são 2:58h da madrugada e eles acabaram de sair da minha casa e vim aqui falar sobre mais essa experiência com vocês, porque acredito que quando conhecemos pessoas incríveis, que nos dão grandes ensinamentos, temos que falar delas para o mundo, e não precisa que sejam grandes mestres consagrados, que tenham best sellers em seus nomes ou que sejam grandes gurus espirituais, basta que sejam elas mesmas em sua essência, e é exatamente o que esses dois meninos são, pura essência, pura alma, pura força em sua potência!

jogadores de futebol visitando escolinha do Fluminense

Cada vez que eles vêm aqui e passam pela minha porta é tanto ensinamento que eles deixam pra trás, é tanto aprendizado que fica, tanta gratidão pela vida que tenho e por ter tido a oportunidade de conhecê-los nessa vida, porque conhecer esses meninos é um privilégio. A história deles é linda e a garra desses dois é de emocionar e me inspiram cada vez que cruzam meu caminho.

Deixo sempre a porta de minha casa aberta para eles e adoro quando adentram e meus filhos também, meu mais velho, Mateus de 10 anos, nem se fala! São ídolos pra ele, pois assim como esses meninos, meu filho quer ser jogador de futebol, e cada vez que eles vêm aqui falar de sua jornada rumo a esse sonho, que é uma construção diária e exaustiva, num universo em que dos 99% dos que querem ser jogador, apenas 1% chega lá, é preciso muito trabalho, e esses meninos, incansáveis, estão nessa corrida pra poucos, mas que com a soma de treino + talento, é fato que para eles é uma questão de tempo e oportunidade.

A vinda deles aqui hoje, me fez revisitar esse pensamento do quanto eu tenho aprendido com eles, do quanto a vida nos surpreende nos colocando em situações de aprendizagem das mais inusitadas e o quanto é fundamental que estejamos abertos para elas, pra que de fato aprendamos a cada oportunidade que nos é dada. Se perguntarem a eles, responderão com toda a certeza que eles vêm aqui para aprender conosco, mas eles nem imaginam o bem que nos fazem, a nós e aos nossos filhos, pois não somos somente nós que aprendemos, mas eles também.

De uma outra vez estiveram aqui, eles andaram nos contando algumas histórias de como foi sua empreitada como jogadores de futebol de um time em que jogaram na Suécia, durante a temporada de 2018. E pra quem conhece ao menos um pouquinho sabe que a vida de jogador de futebol em início de carreira não é fácil, há mais desafios do que soluções e as oportunidades são escassas, muitas vezes únicas e que se você não estiver preparado quando ela passa a sua frente, pode não haver outra chance. Só a presença deles aqui em casa já tem ensinado muito, na prática, ao meu filho mais velho, Mateus.

Neste dia que estiveram aqui e contaram todas as histórias que viveram na Europa, todos os desafios com os quais se depararam, percebi que meu filho ouvia super atento às histórias dos dois, com uma atenção, concentração e envolvimento que poucas situações conseguem extrair dele. A conversa já havia começado há algum tempo e diante de tudo que havia ouvido e que ainda nos era narrado, a certa altura, Mateus se aproxima de mim, chega ao meu ouvido, cheio de cuidado e me lança a seguinte pergunta sussurrando: “- Mãe sabe aquele dinheiro do meu cofrinho, posso dar pra eles?”. Essa é aquela hora que a gente esquece de toda rabugice, de todas as roupas deixadas no chão do banheiro e toalhas molhadas em cima da cama e percebe que aqueles valores essenciais, aqueles que tornam mais humanos, mais éticos mais sensíveis, estão sendo compreendidos, construídos e passados adiante em forma de pequenos GRANDES gestos que fazem num instante, tudo valer a pena!

Nesse cofrinho, tinham exatos cem reais e dentro de mim era sabido que a proporção da demanda daqueles meninos e do que ele tinha a ofertar definitivamente não resolveria a questão que se apresentava, isso olhando com as lentes numéricas que só enxergam nisso o valor monetário daquele dinheiro. Mas se trocarmos as lentes e experimentarmos outra, seremos capazes de vislumbrar a grandiosidade e o tanto de humanidade que há naquele gesto. E naquele dia, por um instante isso bastou. Eles se abraçaram, os dois e meu filho e se emocionaram juntos e choraram juntos numa comunhão de sonhos de pequenos e grandes meninos que veem no futebol a sua arte, o seu propósito, a sua missão de vida!

Eu observei de longe aquela cena, que são daquelas que pra quem viu o filme de animação “Divertidamente”, se transformam nas lembranças, imagens essenciais, aquelas bolinhas de memória que vão para lugares especiais, porque como diz o cronista Rubem Alves “A memória da gente é igual escorredor de macarrão, é cheia de furos. Para que servem aqueles furos? Para perder alguma coisa, para esquecer alguma coisa. Você pega o espaguete quentinho, coloca lá, escorre. Memória é assim, ela escorre tudo o que não faz sentido […]”[1], mas isso fez tanto sentido, que com certeza é uma das coisas que não vai passar pelo escorredor do esquecimento. Porque esse é o tipo de memória, que nos traz aprendizado, que dá sentido à vida, à nossa existência. E que me faz voltar ao ponto por onde comecei este texto, pelo título: quando queremos ensinar e quem aprende somos nós. Esse com certeza foi mais um desses dias.

Nessa noite, já havíamos conversado sobre tantas coisas, trocado tantos aprendizados sobre as experiências deles na Suécia, sobre a fé que têm na vida e que os alimenta na perseverança e na garra com que perseguem seus sonhos, conversamos sobre desenvolvimento pessoal, inteligência emocional, sobre não desistir, sobre auto responsabilidade, mas foi daquele baixinho de 10 anos que até aquele momento esteve em silêncio, só prestando sutilmente atenção à nossa conversa, como quem não quer nada, de onde veio o maior ensinamento naquela noite, ali estava todo o resumo da prosa: gratidão, amor, senso de comunidade, de cidadania, justiça, doação. Mateus não é uma criança de chorar, muito menos na frente dos outros, mas nesse dia ele chorava de soluçar. Eu me contive com o nó na garganta e os olhos mareados, processando o tanto que havia ali.

De uma coisa estou certa, que educação se dá pelo exemplo, basta saber agora nesta roda, quem é que estava sendo educado.

criança com jogadores de futebol

Gabryel (esq), Mateus (meu pequeno) e Bruno (dir)

[1] ALVES, Rubem. “A educação como um ato de amor à vida”. In: MOSÉ, Viviane. A escola e os desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 96.

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