A importância de resgatarmos o sentido e essência de UBUNTU

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Essa semana, no sábado, comecei a organizar minha semana, anotando as tarefas principais, o que era urgente, o que era importante, além de me preparar para começar uma semana como de costume, no que se refere àquelas rotinas básicas, o que inclui também a rotina das crianças obviamente. Mas a rotina, por sua repetição, muitas vezes nos automatiza e nos faz entrar num ritmo que nos desconecta de coisas essenciais, por mais que algumas ou alguns de nós tenhamos consciência e já realizemos na prática a fuga dessa rotina, dessa automatização e dessa desconexão. Mas o fato é que isso é um exercício diário, pois os hábitos se criam na repetição e assim como levamos um tempo para criar o hábito de fazer algo, também levamos algum tempo para criar o hábito de não fazer. Mas porque estou falando tudo isso?

Porque era pra ser um domingo como os outros, aliás, dificilmente aqui em casa os domingos são iguais, então, melhor dizendo, era pra ser um domingo diferente como todos os outros, e acabou sendo! Mas não um diferente planejado. Em geral, nossos filhos dormem e quando acordam a primeira coisa que fazem é abrir os olhos, certo? Errado! Quando se está com conjuntivite os olhos não abrem pela manhã, eles ficam grudados e a criança não consegue abrir os cílios colados. E foi assim que amanheci meu domingo, ou melhor, que fui acordada pelo meu filho gritando e chorando assustado por ao acordar e não conseguir abrir seus olhinhos (esse é o Teo). Corri, peguei o algodão e o soro pra limpar e acalmá-lo e em seguida aquelas coisinhas que vocês já devem imaginar: toma banho, arruma bolsa, pega carteira de vacinação, carteira do plano, entra no carro a trupe toda (sim, porque hospital no domingo aqui em casa é com a trupe toda!) e vamos para a emergência do hospital, afinal como dizia minha mãe “com olho não se brinca!”.

Vou poupá-los da parte do hospital porque já narrei há pouco tempo um outro episódio sobre isso (e pra quem quiser ler vou deixar o link no final desse texto) e é a parte chata da coisa toda. Pulando direto para o diagnóstico: conjuntivite viral nos dois olhos. Traduzindo, uma semana de molho em casa pra não passar pra criançada toda! Já era natação, escola à tarde e brincar com os coleguinhas na rua, afinal, é viral.

E é aí que a gente se depara com o fato de que a rotina deles muda, mas na teoria a nossa não, o que na prática é bem diferente. Ainda não falei sobre isso aqui e ainda vou escrever sobre isso de forma mais detalhada, explicando os porquês dessas minhas escolhas, mas não sou muito fã dessas tecnologias no universo infantil, não da forma como tenho observado. Claro que entendo que estamos no século XXI e não dá pra nos isolarmos numa bolha e nem impedir que nossos filhos tenham contato com esse fluxo do desenvolvimento que é a inserção da tecnologia em nossas vidas. Acredito que as tecnologias e as redes estão aí e são grandes e potentes ferramentas que quando bem utilizadas, têm muito a somar, mas tudo em demasiado não faz bem. Cresci ouvindo um ditado que me veio à lembrança agora, desculpem citá-lo aqui, mas é pertinente, pois diz que “O boi é gordo de tanto comer capim.”. E toda vez que algo passa da medida me lembro desse ditado. Então, estando eu literalmente 24h com meu filho em casa, porque quando ele dorme também conta, fiquei pensando o que podia ser feito para fugir desse lugar comum que é o universo dos eletrônicos, porque pra mim não é tão comum assim. Aqui em casa temos televisão, DVD, celular, computador, canal a cabo, tablet e não sou contra nada disso, mas sou a favor da regulação, de um equilíbrio, de um uso consciente que começa por mim. Como assim? Educação a meu ver é pelo exemplo, então, se preciso estar ao celular, mas meus filhos me chamam, não os ignoro, paro e respondo nem que seja pra pedir que esperem até que eu acabe porque aquilo que estou fazendo naquele momento é importante. Mas se é algo que posso interromper, o faço e atendo ao chamado dos pequenos. Não os ignoro, porque não é isso que quero que aprendam e costumo repetir que se estão usando algum dispositivo está tudo certo, o que não está bom é quando estão sendo usados pelo dispositivo. Se você vai de um cômodo a outro em sua casa e seu celular te acompanha, vai junto com você, algo está muito errado.

Sendo assim, durante esta semana, tenho buscado intercalar momentos com ele e momentos em que me dedico a algumas tarefas que não posso deixar de realizar, alguns estudos e escritas que preciso ter constância, como este espaço aqui do blog, por exemplo. Então, tento acordar um pouco antes dele pra tomar meu café e ler um pouco das coisas que separei no dia anterior, pra quando ele acordar eu poder estar com ele, ESTAR PRESENTE, estar aqui, não só remediando o inevitável, mas tentando entender  que os dias não serão os mesmos e aproveitando essa oportunidade de estar com meu filho por mais tempo e aprender com ele, do mundinho dele, porque quanto mais eu aprendo mais meu ele vira e mais me divirto com ele.

Então, de manhã, quando ele acorda, vou cuidar dos olhos, alimentar e conversar com ele. Aí ele almoça e, então, vai para a super mega giga piscina que tem aqui na varanda de casa que deve bater no meu joelho, porque outro ditado que aprendi na minha infância foi “quem não tem cão caça com gato”, então, esse “gatinho” que tem na nossa varanda tem nos feito muito felizes nesses dias de verão “maçarico” do Rio de Janeiro, onde parece ter um sol pra cada um.

Enchi a piscina, pra ter mais uma opção e joguei uns brinquedos lá dentro. É incrível como as crianças sabem se divertir com pouco e como podemos reaprender isso com eles. Durante o carnaval tive oportunidade de visitar uma lojinha e perdido lá no meio encontrei um livrinho singelo, mas muito interessante, que é uma espécie de dicionário que o autor escreve seu olhar e interpretação de verbetes essenciais como quando ele define a palavra “adulto”: “juguete que se olvido como funciona”[1], traduzindo “brinquedo que se esqueceu como funciona”, o que pra mim traduz lindamente a nossa incapacidade de brincar, o esquecimento da nossa criança interior. Dei essa volta toda porque esses dias tem sido mais oportunidades que tenho tido de brincar com meu filho e de brincar comigo, com a minha criança, de existir num tempo outro, porque o tempo da criança é desacelerado, a não ser quando se trata de brincar, aí elas perdem a capacidade de esperar, mas uma vez imersas na brincadeira, esquecem de todo o resto. Então, como tem sido eu e ele, porque a rotina dos outros segue normal (e sobre isso, esse tempo-espaço também escreverei, porque merece atenção) tenho aproveitado pra inventar coisas e pra repetir aquilo que já gostamos de fazer. Desta forma, estou lendo mais pra eles, porque o irmão também entrou na dança de alguma forma, temos inventado comidinhas, preparado lanchinho juntos, nos permitido comer um pouco fora da hora, sair da rotina um pouquinho e hoje inventamos uma coisa legal, que alguém, em alguma parte do mundo já deve ter feito, mas como eu ainda não vi, por um instante podemos tirar essa licença poética, eu e meu pequeno, para dizer que inventamos a “pintura com água”. Por um instante de fato, porque nesse calor aqui do Rio os desenhos/criações rapidamente secam e desaparecem! E no momento que fizemos foi tão legal, tão divertido, que resolvi até registrar pra mostrar pra vocês, porque pensei, caramba, outros pais podem fazer isso, que coisa legal! A gente começou com o dedo, mas depois peguei um pincel e ficamos ali um tempo, descobrindo novas formas, entendendo sobre duração, dava até, se fosse o caso, pra dar uma aula de Ciências ali, sobre “estados da água” e outras coisas mais.

E olha como as coisas são e nada acontece por acaso, estou lendo um livro da filósofa Viviane Mosé[2] e nele ela entrevista diversos educadores. Encerrado o momento piscina, coloquei um filme para o pequeno assistir, a pedido dele e aproveitei pra ler mais uma entrevista e é aí que está a “não coincidência”, pois era justamente uma entrevista com o antropólogo, educador popular e folclorista Tião Rocha, onde narra sua linda, potente e emocionante experiência de educação em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha – MG. Ele, que fez o que poucos teriam coragem de fazer, que é se demitir do cargo de professor universitário de uma universidade federal, o primeiro a fazer isso na UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), abandonando a vida acadêmica por não ver mais muito sentido nessa função pra se dedicar a algo que vai pra além de ensinar, que é educar. E tudo o que fui lendo foi fazendo tanto sentido pra mim como mãe, como professora, como arte-educadora! Deveriam existir mais “Tiãos” ou seria “Tiões”…bem, não importa. O fato é que deveriam existir mais pessoas assim e acredito até que existam não muitos, mas outros mais espalhados por aí, mas que nós desconhecemos. São trabalhos transformadores e pioneiros como o dele que começam fazendo a diferença numa pessoa, depois numa comunidade, numa cidade, estado, país, até ganhar o mundo. Tião abandona a universidade e começa a se dedicar a construção de um projeto de educação à sobra de um pé de manga, fora das paredes da escola, com a pedagogia da roda envolvendo e formando educadores que emergem da comunidade, da cidade, transmutam mães em seus papéis à condição essencial de educadoras, alcançando e devolvendo às crianças que apresentavam dificuldade de aprendizado nas escolas, por falta de escuta, a sua dignidade e direito à condição de cidadãs. E esse projeto vai crescendo.

E entendendo que cada ser humano tem seu saber, tem sua luz e como ele mesmo trata como “pontos luminosos”, enxergando ato educativo nos gestos mais simples, vai envolvendo um a um com seus saberes, envolvendo inclusive a senhora que faz biscoitos de goma e lhe propõe que faça ao invés de desenhos, biscoitos em formas de letras, o que ela chamou de “biscoitos escrevidos, se já é escrevido, pode escrever qualquer coisa.” (2013, p. 276). E essa passagem me fez lembrar novamente de minha mãe e agora não na minha infância, mas nos últimos tempos em que deu pra fazer biscoitos adocicados à base de maisena. Digo “deu pra fazer” porque já adianto a vocês que minha mãe é de tempos. Teve o tempo do pãozinho, o tempo do doce de leite derramado e cortado na pedra de mármore, teve o tempo das broas, isso tudo na minha infância e adolescência e agora, com o nascimento dos netos, de uns anos pra cá ela tem sido mais requintada nos seus quitutes (o que os netos não fazem com uma avó! Porque os pãezinhos eram desafiadores pra nós filhos!) que evoluíram pra pão de queijo (até recheado!), quibe de forno, calzones e agora estamos na época dos biscoitinhos, que até que está durando!

Numa das minhas idas com os filhotes pra ver a vovó, que mora em outra cidade, lá estava ela preparando seus biscoitinhos e eis que meus filhos resolvem ajudar, como costumam fazer aqui comigo, sentando com ela pra enrolar os biscoitos e daí começam a surgir formas não muito redondas, bolinhas, bolões, espirais e, em seguida, letras! As letras dos seus nomes: M-A-T-E-U-S e T-E-O feitas de biscoito! Biscoitos “escrevidos”!

E olha que minha mãe nem conhece o Tião e aquela senhora, mas isso não importa, criar é um dom do ser humano, o que temos de melhor, o que dá sentido à vida e um ato educativo por essência. Talvez um dos contatos mais genuínos que meus filhos tenham tido com as letras de seus nomes, Mateus por ser maior e já alfabetizado, talvez tenha tido uma percepção outra daquele momento, mas para o mais novo com certeza é um gesto do qual nunca mais se esquecerá, pois foi um ato significativo, ele ficou feliz, fez sentido, teve significado e isso a nossa memória retém, porque tem emoção envolvida ali, de todos os lados. E naquele dia, o biscoito que eles até então nem ligavam muito, eles comeram, porque quer prazer maior do que comer as letras do próprio nome!? Isso me lembrou também o macarrão de letrinhas e de bichos que fazemos aqui em casa de vez em quando.

E todas essas memórias vieram à tona enquanto lia este livro hoje. Porque o projeto do Tião não parou por aí. Surge um grupo de meninos participantes do projeto que gostava de cantar, então, dentro do projeto providenciaram quem pudesse aprimorar essa habilidade nos meninos e daí nasceu um coral, do coral diversos CDs, incluindo o “Meninos de Araçuaí”, apresentações, viagens para o exterior (Paris), inclusive um DVD gravado com Milton Nascimento. Com tudo isso, esses meninos ganharam na época cerca de 40 mil e com a arrecadação decidiram, em consulta às outras crianças da comunidade, construir um cinema pra sua cidade, o cinema “Meninos de Araçuaí”. Um projeto que começou numa pequena cidade estigmatizada pela pobreza e pela exportação de mão de obra escrava pra trabalhar nas plantações de cana e que ganhou o mundo!

E me pus a pensar o quanto precisamos mais disso, de experiências como essas, de educação sinestésica, que envolva outros sentidos que não só a visão. E quando falo de educação, estou falando de nós pais, da família, da comunidade, da cidade, porque como dizem os mestres moçambicanos, para educar uma criança precisamos de toda a aldeia. Assim sendo, precisamos convocar essa aldeia e cada um dar o melhor de si e se responsabilizar pela educação de cada criança, pois todos nós somos pontos luminosos e precisamos tirar essa névoa que encobre e que nos impede de enxergar a nossa própria luz e ajudar com que outros enxerguem seu saber e entendam que seu saber importa. E esse educar não é sinônimo de ensinar e não devemos transferir esse papel para a escola, ela é parte desse processo.

Sejamos nós todos educadores em todos os momentos da nossa vida, como uma forma de existir, somando, ajudando o outro com nosso saber, participando da educação dos nossos filhos nos detalhes mais simples como com os “biscoitos escrevidos” e resgatando a essência do que a palavra africana UBUNTU traz em seu profundo significado: “uma pessoa é uma pessoa através (por meio) de outras pessoas.”. E como disse Nelson Mandela: “Você está fazendo algo com o fim de formar parte de sua comunidade para assim ir melhorando-a? Essas são as coisas importantes da vida e se alguém pode fazer isso é algo muito importante que deveríamos apreciar.”. Comecemos em casa até alcançarmos toda a nossa “aldeia”.

Sejamos presentes, sejamos educadores todos e UBUNTU!

Era uma vez um domingo diferente, uma conjuntivite, uma piscina, um escrever com água na parede da varanda, um filme, um livro, um educador, uma aprendiz de educadora e duas crianças: meu filho e eu.

 

Leia também: “Quando um pequeno se mostra um gigante

[1] BRISAT, Ni. “Si tuviera mi próprio dicionário”. 2017

[2] MOSÉ, Viviane (Org). A escola e os desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

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