Arte e Vida

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© Michelangelo, “Escravos” (Wikicommons)

Às vezes me pergunto o que me fez escolher na vida, a arte. Já tentei buscar nos emaranhados da memória o momento em que deu aquele estalo e fiz essa escolha. E sinceramente, não me lembro. Talvez porque não tenha sido um estalo, como a lâmpada acesa acima da cabeça que permeia o imaginário coletivo do nascer das ideias. Comigo não foi assim. É como se já estivesse ali todo o tempo e em pequenos gestos viesse vindo à superfície aos pouquinhos. Isso me faz lembrar o mesmo processo de que falava Michelangelo sobre a criação de suas esculturas, em que dizia que não era ele que esculpia sobre a pedra a obra, mas que a obra já estava contida na pedra, ele apenas retirava o excesso e deixava a forma fluir. Sua ideia era libertar a forma que parecia estar adormecida no mármore. Essa era a sua filosofia da criação, o seu olhar para além da matéria, para além da superfície. E assim somos nós.

No meu caso, vinha num sambar do estalar de dedos sobre uma caixinha de fósforos; no cantar para as visitas no centro da sala, nos desenhos, na apreciação de obras, no representar diante do espelho onde eu era a atriz e a plateia num só instante. E foi criando raízes mais sólidas à medida que amadurecia a consciência. Foi ficando cada vez mais claro, cada vez mais nítido, como se emergisse a forma de dentro da rocha e começasse a esboçar nuances ainda bem grotescas entrevistas pela superfície. Até o dia em que comecei a dizer, meio sem saber de onde, meio sem saber por quê: “- Quero ser atriz.”.

E não foi uma decisão na primeira vez que foi dito, era uma certeza intrínseca, como se não houvesse outro caminho possível. E eis que vêm as regras de perspectiva, as noções de profundidade, as justas proporções, e lá fui eu fazer vestibular para ingressar na universidade. Pra esculpir a escultura na pedra bruta.

E, então, chegam as curvas daquilo que parecia linear, os atravessamentos, as irrupções e todo o processo de eterna construção e desconstrução daquilo que chamamos vida. E dada a obra como pronta, como acabada, esculpida, eis que ela trinca, se parte, cria fissura. Eis que o sentido se rompe simultaneamente à matéria. E me pego hoje a pensar sobre o momento exato onde tudo começou. E me dei conta exatamente do que falei aqui no início, de que já estava ali todo tempo, estava ali desde as saias da baiana de escola de samba de minha avó, estava ali desde o trompete de meu avô na banda “Os Paraquedistas”, estava ali nas cenas teatrais de minha avó encenadas na escola onde lecionava, no som do assobio de meu avô, nas cordas de um bandolim, nas acrobacias de uma mãe-criança que um dia foi baliza de banda marcial e toda a ancestralidade que me antecede, que compõe essa minha constelação, que honro e reverencio.

E dessa pausa estabelecida pela fissura, é como se a pedra estremecesse por movimento, por vida, por continuidade ao processo, é como se a fissura fosse parte dela, pra que dali brotasse mais uma vez vida, e intimasse a continuações e geração de novos sentidos a partir do que se estabeleceu e dos novos sentidos a surgir. E eis que há alguns dias, me deito pra dormir e o sono não vem, fecho os olhos, mas daquela fissura, emerge uma inquietação que me faz levantar da cama para vir aqui escrever, como se nesse gesto que agora brota através dos dedos, a arte clamasse por liberação.

Então, aqui estou eu permitindo emergir da fissura toda a energia contida, retida, naquilo que por hora pareceu ferida, mas que vejo agora que era a abertura necessária a obra aberta, para me alertar de que a obra ainda não estava pronta.

Assim, levantada às cinco, volto à esculpir essa eterna obra inacabada, deixando surgir de dentro pra fora novos sentidos, deixando que a pedra delineie seus próprios traços, ao invés de cortá-la num gesto brusco impondo-lhe uma beleza que não é a sua própria, de pedra. Encosto meu ouvido nela e pra minha surpresa eu a ouço. Tinha parado de ouvi-la. Tinha parado de senti-la. Andei marretando a pedra na intenção de dar uma forma que não era a sua, a fissura talvez tenha surgido aí. E sem notá-la, tive a falsa sensação de que estava pronta, acabada, polida. Vejo agora que a fissura era apenas a deixa de que o processo estava só por começar e, assim como a vida, tem suas etapas, cada uma com seus aprendizados.

Olho pra pedra…vejo luz através da fissura e ela ilumina uma nova forma que começa a emergir.

Ela despertou…

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